Chamado de “tabaréu” pelos adversários, Zé Borges se tornou prefeito de Curaçá, enfrentando preconceitos, conquistando admiradores e deixando um legado de coragem, generosidade e compromisso com os menos favorecidos.
O menino da Água Branca
José Félix Filho, mais conhecido como Zé Borges, nasceu em 8 de junho de 1917, na Fazenda Água Branca. Na época, a propriedade estava situada no distrito de Barro Vermelho, que mais tarde passou a integrar Poço de Fora, ambos pertencentes ao município de Curaçá, Bahia. Sua chegada foi motivo de grande alegria para seus pais, José Félix Martins e Maria Borges Silva, e trouxe novas esperanças à família. Como segundo filho do casal, Zé Borges cresceu rodeado pelo afeto dos pais e pela convivência próxima com seus irmãos: Manoel, o primogênito, seguido por Maria, Izabel, Francisco e Antônio.
Desde cedo, a fé católica teve um papel central em sua criação. A religiosidade de sua família influenciou profundamente sua formação, transmitindo valores que ele levaria consigo por toda a vida. Os ensinamentos cristãos o moldaram desde a infância, inspirando nele um senso de justiça, caridade e amor ao próximo — princípios que mais tarde guiariam sua atuação profissional e política.
Na infância, Zé Borges compartilhava os dias com outras crianças da Fazenda Água Branca, explorando os quintais de terra e criando suas próprias aventuras. Um de seus passatempos favoritos era montar pequenos currais com gravetos e pedras, onde os ossos de animais se transformavam, em sua imaginação, em bois prontos para o manejo. Essas brincadeiras, além de pura diversão, revelavam sua afinidade com a pecuária e antecipavam o caminho que seguiria mais tarde.
Os momentos lúdicos também eram influenciados pelo contexto da época. As histórias sobre cangaceiros, tão presentes nas conversas dos adultos, despertavam a imaginação das crianças. Usando pedaços de pau e pedras como bonecos, recriavam cenas de confrontos entre policiais e bandoleiros, reproduzindo, à sua maneira, os relatos sobre a passagem de Lampião e seu bando pela região.
Foi nesse ambiente, entre a simplicidade do sertão e as influências de um tempo marcado por desafios e transformações, que Zé Borges começou a forjar sua identidade. Seu olhar atento para o mundo ao redor, aliado ao espírito curioso e determinado, indicava que aquele menino da Água Branca estava destinado a uma trajetória muito além das fronteiras de sua infância.
Desafiando o terror do cangaço
No sertão nordestino, a ameaça dos cangaceiros pairava sobre as famílias, alimentada por histórias de vingança e perseguições implacáveis. A família Borges não estava imune a esse cenário. O ódio dos cangaceiros contra eles remontava ao tio de Zé Borges, Herculano Borges, que, enquanto delegado, prendeu Corisco, então um simples feirante rebelde em Bonfim.
Os Borges possuíam uma linhagem marcada pela liderança. Herculano era trineto de Rafael dos Anjos, migrante de Pernambuco para a Bahia. Seu filho, Joaquim Cardoso da Silva Matos, levou parte da família para Uauá e Vila Nova da Rainha. Joaquim teve uma filha, Carolina, que se casou com Antônio Borges de Salles, o primeiro Borges a chegar em Uauá. Da união nasceram sete filhos, incluindo Francisco Borges, que, ao lado de sua esposa, Libânia, perpetuou a tradição familiar. Com o tempo, o sobrenome Salles foi abreviado para Sá, e os descendentes de Antônio e Carolina consolidaram-se como líderes políticos.
A força política da família se evidenciou com João Borges de Sá, prefeito de Uauá, e Rafael da Silva Borges, neto de Antônio, que também governou o município. A influência seguiu por gerações: sete bisnetos de Antônio foram prefeitos, divididos entre Uauá e Curaçá, entre eles José Félix Filho, o Zé Borges. A linhagem continuou com trinetos, como José Hugo Félix Borges, que ocupou a vice-prefeitura de Curaçá.
A posição dos Borges na política lhes conferia certa proteção. Em Uauá, onde João Borges era prefeito, destacamentos militares ferozes barravam a entrada de Lampião e seu bando. Segundo o historiador Rubens Antônio, os tenentes Odonel Francisco e Manoel Campos de Menezes, grandes inimigos do cangaço, mantinham a cidade segura. Relatos de antigos moradores confirmam que Lampião evitava a área, contornando-a pela zona rural.
No entanto, para Corisco, a rivalidade com os Borges era pessoal. O conflito começou quando Herculano Borges, então subdelegado de Santa Rosa de Lima, em Jaguarari, foi obrigado a intervir na feira local. Corisco, conhecido por sua rebeldia, recusou-se a pagar impostos, enfrentou os policiais e foi preso. Libertado no dia seguinte, jurou vingança.
Algum tempo depois, a casa de Herculano foi incendiada. Sentindo-se ameaçado, ele abandonou o cargo e se mudou para Senhor do Bonfim com a família. Mas a vingança de Corisco estava apenas começando. Já inserido no bando de Lampião, ele comandou uma emboscada que culminou no brutal assassinato de Herculano, em 1931, na fazenda Bom Despacho. Zé Borges, então com 14 anos, cresceu ouvindo relatos sobre as atrocidades do cangaço e a crueldade de seus membros.
A tragédia lançou uma sombra sobre a família, que passou a ocultar o sobrenome Borges ao registrar os filhos, numa tentativa de escapar da fúria dos cangaceiros. No entanto, José Félix Filho recusou-se a se esconder. Em um ato de coragem e desafio, passou a se apresentar como "José Borges", reivindicando sua identidade e enfrentando o temor que os cangaceiros haviam imposto. Mais tarde, o nome se tornou seu símbolo político, refletindo sua força e determinação diante das adversidades.
Lampião
Virgulino Ferreira da Silva, conhecido como Lampião, foi uma figura central no cangaço, movimento que marcou o sertão nordestino nas primeiras décadas do século XX. Nascido em 4 de junho de 1898, em Vila Bela, Pernambuco, Lampião liderou um bando que, por quase duas décadas, espalhou medo e violência por diversas comunidades rurais. Suas ações incluíam saques a fazendas, ataques a comboios e sequestros de fazendeiros para obtenção de resgates. Essas investidas não apenas desestabilizavam a ordem local, mas também deixavam marcas profundas nas populações atingidas, que viviam sob constante ameaça.
A notoriedade de Lampião cresceu a ponto de ele ser considerado o "Rei do Cangaço". Sua liderança carismática e estratégias militares desafiavam as forças policiais, conhecidas como "volantes", que tinham dificuldade em capturá-lo devido ao conhecimento que o bando possuía da geografia local e ao apoio de alguns moradores. No entanto, para muitos, suas ações eram vistas como atos de banditismo e terrorismo, especialmente pelas classes mais abastadas e pelas autoridades, que o consideravam um criminoso impiedoso.
A trajetória de Lampião chegou ao fim em 28 de julho de 1938, quando ele e parte de seu bando foram emboscados e mortos por forças policiais na Grota do Angico, em Poço Redondo, Sergipe. Sua morte marcou o declínio do cangaço como movimento organizado. Entretanto, o legado de Lampião permanece vivo no imaginário popular, sendo objeto de estudos, debates e representações artísticas que buscam entender as complexas dinâmicas sociais e culturais do sertão nordestino daquela época.
Amizade com Jerônimo Ribeiro
Durante sua infância, Zé Borges frequentou uma escola localizada na própria fazenda em que vivia, onde foi ensinado por uma professora leiga chamada Izabel Félix. Ele estudou apenas por dois anos, o suficiente para ser alfabetizado e aprender as quatro operações matemáticas básicas. Seus pais consideravam esses conhecimentos adequados para a vida simples no campo, onde o trabalho e a experiência prática eram mais valorizados do que a educação formal.
Na adolescência, Zé Borges se mudou para a cidade de Uauá, onde trabalhou na loja de tecidos de seu tio Rafael Borges. Foi nesse período que ele desenvolveu uma notável habilidade para o comércio, demonstrando um grande talento para lidar com clientes e negociar preços. Esse aprendizado foi essencial para sua trajetória futura, pois além de garantir seu sustento, proporcionou-lhe uma visão estratégica dos negócios e da dinâmica econômica local.
Além da experiência comercial, a mudança para Uauá trouxe a Zé Borges amizades que marcariam sua vida. Entre elas, destacou-se a amizade com Jerônimo Ribeiro, que mais tarde se tornaria seu cunhado ao se casar com sua irmã Maria Borges. Jerônimo, poeta e escritor, se tornou um líder político influente em Uauá, governando o município por quatro mandatos: de 1948 a 1951, de 1955 a 1959, de 1962 a 1966 e de 1970 a 1972.
A relação entre Zé Borges e Jerônimo Ribeiro era baseada em respeito e admiração mútua. Jerônimo, além de político, era um homem culto, profundamente ligado à literatura e à tradição oral do sertão. Suas poesias retratavam o cotidiano do povo nordestino, com suas lutas e esperanças. Essa sensibilidade política e social influenciou Zé Borges, que, mesmo sem uma educação formal avançada, absorveu importantes lições sobre liderança e compromisso com a comunidade.
A parceria entre os dois não se limitou apenas ao convívio familiar, mas se estendeu também ao campo político. Jerônimo, com sua experiência na administração pública, serviu de inspiração para o futuro político de Zé Borges, que encontrou em seu cunhado um exemplo de dedicação ao bem-estar da população de Uauá. Dessa amizade, nasceu uma aliança que contribuiria para fortalecer a influência da família Borges na política local, perpetuando um legado de liderança e participação ativa no desenvolvimento do município.
O audacioso vaqueiro
Antes de entrar na fase adulta, Zé Borges retornou à Fazenda Água Branca, onde se destacou como um talentoso vaqueiro. Sua bravura e habilidade em cavalgar em alta velocidade pela Caatinga eram notáveis. Lidar com o gado no sertão é um desafio, pois, muitas vezes, era necessário buscar bois perdidos em meio à vegetação densa, enfrentando perigos constantes, como troncos de árvores pelo caminho e os enormes espinhos da vegetação local. Zé Borges era um mestre na condução do rebanho, demonstrando destreza e coragem ao enfrentar as dificuldades típicas da lida com o gado.
Ser vaqueiro no sertão exigia mais do que apenas habilidade com os animais. Era preciso resistência física para suportar longas jornadas sob o sol escaldante, além de astúcia para encontrar trilhas seguras em meio à caatinga. Nos dias de tempestade, quando a terra seca se transformava em lama e os riachos temporários se enchiam de correntezas, Zé Borges mostrava sua perícia ao conduzir o rebanho sem perdas. Ele também se destacava nas festas de vaqueiro, eventos tradicionais em que as habilidades eram testadas em competições de pega de boi, cavalgadas e provas de destreza. Nessas ocasiões, ele quase sempre conquistava o primeiro lugar, sendo admirado não apenas por sua bravura, mas também pela sua vestimenta típica, composta por gibão, perneiras e chapéu de couro, elementos essenciais da cultura sertaneja.
Em sua juventude, Zé Borges namorou sua prima Boaventura Félix Silva, mais conhecida como Nenzinha, e em janeiro de 1941, eles se casaram. Estabeleceram-se na fazenda Esfomeado, propriedade de sua sogra, Januária Félix, onde Zé Borges trabalhou como vaqueiro, cuidando do modesto rebanho nas terras áridas da caatinga. Seu trabalho era árduo, mas ele não se deixava abater pelas dificuldades, sempre encontrando maneiras de prosperar mesmo diante das adversidades.
Essa fazenda havia sido abandonada desde 1924, devido à guerra entre João Félix e José da Martinha. Durante o conflito, a fazenda fora cercada e a sede ficou marcada por balas de tiroteios. João Félix conseguiu escapar com sua família durante a noite, aproveitando seu conhecimento das peculiaridades da região. Enquanto a família deixava a casa, os aliados de José da Martinha, ouvindo o barulho, acabaram trocando tiros entre si, em um trágico equívoco, disparando uns contra os outros. João Félix e sua família conseguiram deixar o local em segurança, juntamente com os empregados.
Assim como desafiou o medo ao usar o sobrenome Borges, que era jurado pelos cangaceiros, Zé Borges também decidiu morar na fazenda onde ocorreu o ataque brutal contra sua família. O lugar carregava as marcas do passado, mas para ele, o desafio era apenas mais uma prova de sua coragem. A fazenda, apesar da história sangrenta, oferecia uma oportunidade de recomeço. Com o tempo, ele restaurou a casa, cuidou das terras e tentou transformar o ambiente hostil em um lar próspero para sua família.
Foi nessa fazenda que os primeiros filhos nasceram: Maria Nilce, que infelizmente faleceu antes de completar dois anos de idade, seguida por Maria Perpétua e José Hugo. A perda de Maria Nilce foi um duro golpe para Zé Borges e Nenzinha, mas a dor fortaleceu ainda mais os laços da família. Com determinação, ele seguiu trabalhando incansavelmente para garantir o sustento de todos. Apesar de sua habilidade como vaqueiro e na criação de animais, os rendimentos da fazenda não eram suficientes para manter sua família. Diante disso, além de trabalhar na fazenda, Zé Borges decidiu negociar caprinos e ovinos.
O comércio de animais exigia grande esforço e resistência. Ele comprava cabras e ovelhas nas fazendas vizinhas e as conduzia a pé até as feiras de Jaguarari e Senhor do Bonfim, dois importantes centros comerciais da região. As viagens eram longas, percorrendo distâncias superiores a 250 km, de ida e volta. Durante o trajeto, Zé Borges enfrentava sol intenso, noites frias e, ocasionalmente, o risco de ataques de ladrões. Contudo, sua determinação o impulsionava a seguir em frente. Sua reputação como comerciante justo e confiável logo se espalhou, e ele conseguiu prosperar, tornando-se respeitado não apenas como vaqueiro, mas também como um homem de negócios habilidoso.
A vida no sertão era dura, mas Zé Borges encarava cada obstáculo como uma oportunidade de crescimento. Seu espírito destemido e sua capacidade de adaptação foram essenciais para construir sua trajetória, sempre pautada na coragem, na resiliência e no desejo de garantir um futuro melhor para sua família.
O ingresso na política
Em 1949, Zé Borges mudou-se com sua família para Poço de Fora, um distrito de Curaçá, na Bahia. Ali, encontrou um ambiente propício para expandir seus negócios e consolidar sua influência na região. Foi em Poço de Fora que nasceram mais duas filhas: Maria do Socorro e Solange Maria. Os demais filhos vieram ao mundo em Juazeiro: Humberto, Rita de Cássia e Norma Suely.
Com o tempo, Zé Borges diversificou suas atividades. Além do comércio de caprinos e ovinos, passou a atuar também na compra e venda de couro. Pequenos agricultores e criadores da região vendiam a ele peles de caprinos, ovinos e bovinos, que eram levadas a Juazeiro, onde havia um importante matadouro e um próspero mercado de couro. Sua visão empreendedora logo o levou a um novo ramo: a negociação de bovinos vivos. Ele comprava gado nas fazendas do sertão e os levava a pé até Rio Branco, hoje conhecido como Arcoverde, em Pernambuco. Essas jornadas eram exaustivas e duravam até quinze dias de caminhada, enfrentando estradas poeirentas, intempéries e os riscos comuns das longas viagens pelo sertão.
A determinação e a coragem de Zé Borges tornaram-se conhecidas na região. Sua palavra era respeitada, e sua honestidade nos negócios lhe rendeu grande prestígio entre comerciantes e produtores rurais. Seu nome começou a circular entre os políticos locais, que viam nele um homem capaz de representar os interesses da população sertaneja. Assim, nas eleições municipais de 1950, Zé Borges foi convidado a concorrer ao cargo de vereador. No entanto, ele recusou o convite, pois considerava improvável obter sucesso. O distrito de Poço de Fora já havia lançado um candidato, João Francisco Félix, mais conhecido como João Coleta, que era uma liderança consolidada na região. Além disso, o distrito vizinho de Barro Vermelho era politicamente comandado pelo fazendeiro Juvino Ribeiro, um antigo desafeto de Zé Borges. Com um cenário pouco favorável, ele avaliou que suas chances de vitória eram mínimas e preferiu não entrar na disputa.
Entretanto, em 1954, as circunstâncias mudaram. O cenário político de Curaçá estava agitado, e seu primo Virgílio Ribeiro decidiu lançar candidatura à prefeitura. Dessa vez, Zé Borges percebeu que sua participação poderia fazer a diferença. Decidiu, então, entrar na disputa para vereador, não apenas para fortalecer a candidatura de Virgílio, mas também para garantir que Poço de Fora tivesse uma voz forte na Câmara Municipal.
A campanha foi intensa. João Coleta, que já era vereador e buscava a reeleição, apoiava o candidato a prefeito Antônio Paixão. A disputa entre os grupos políticos foi acirrada, e Zé Borges precisou mobilizar seu prestígio e sua rede de contatos para conquistar apoio. Seu histórico de homem de palavra, trabalhador incansável e conhecedor das necessidades do povo sertanejo pesou a seu favor. No fim, o resultado confirmou sua força política: Zé Borges foi eleito vereador, e seu primo Virgílio Ribeiro venceu a disputa pela prefeitura de Curaçá.
Curiosamente, João Coleta também foi reeleito, o que garantiu a Poço de Fora um fato inédito até então: o distrito passou a ter dois representantes na Câmara Municipal, fortalecendo sua influência no cenário político municipal. Para Zé Borges, aquele era apenas o começo de uma nova jornada, na qual seu espírito de liderança e seu compromisso com a comunidade seriam colocados à prova..
“O doutor e o tabaréu”
Na eleição seguinte, em 1958, Zé Borges foi reeleito vereador, o que aumentou ainda mais seu prestígio e o tornou conhecido em toda a região. Durante esse período, ele expandiu seus negócios, passando a comercializar não apenas animais, mas também cereais, algodão, sisal e mamona. Apesar do crescimento pessoal que Zé Borges experimentava, ele percebeu as limitações impostas pela sua educação limitada e decidiu se mudar para Juazeiro, a fim de investir na educação de seus filhos. Essa decisão foi inspirada em seu tio Rafael Borges, que havia gastado todo o seu patrimônio para proporcionar uma educação de qualidade aos seus próprios filhos em Salvador.
Zé Borges sempre expressou sua preocupação em garantir uma boa educação para seus filhos. Durante as refeições em família, ele repetia incessantemente que não queria deixar nenhum gado ou cabra para eles, mas sim proporcionar-lhes uma formação universitária para que pudessem conquistar seus sonhos.
Em 1962, para surpresa de todos, Zé Borges decidiu lançar-se como pré-candidato a prefeito de Curaçá, ideia que muitos consideravam "loucura". A elite de Curaçá, com visível preconceito, o rotulava de "tabaréu", menosprezando sua origem como vaqueiro, subestimando sua preparação e apontando sua baixa condição financeira. Além disso, seus correligionários também o consideravam inadequado por ser do interior do município, com pouco conhecimento da população ribeirinha que vivia às margens do Rio São Francisco.
Enfrentando oposição de todos os lados, Zé Borges teve sua primeira decepção na política. No dia da convenção municipal, seu partido, o PR (Partido Republicano), negou-lhe a legenda para concorrer ao cargo de prefeito. Nenhum dos outros partidos existentes concordou em apoiá-lo.
Entretanto, de acordo com a legislação eleitoral da época, Zé Borges reuniu seus amigos e criou o diretório regional de um partido que ainda não existia no município. Assim, com o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) em suas mãos, ele embarcou em sua desafiadora candidatura, adotando o slogan jocoso: "O doutor e o tabaréu de chapéu de couro", em referência ao seu principal adversário, o favorito da elite local, o médico Jaime da Silveira Coelho, conhecido como Doutor Jaime, membro de uma família tradicional de Curaçá e diretor do Hospital Regional de Juazeiro.
Sensibilizado com os ataques preconceituosos desferidos contra Zé Borges durante a campanha, um dos candidatos a prefeito, Durval Santos Torres, conhecido como Durval Gato, decidiu desistir de sua candidatura para concorrer a vereador e apoiar o vaqueiro como candidato a prefeito. Durante uma conversa com Zé Borges, Durval fez um pedido: que os vereadores eleitos por Zé Borges o apoiassem para ser o presidente da Câmara, que tinha um papel semelhante ao de vice-prefeito atualmente, sendo o primeiro na linha de sucessão em caso de substituição. A resposta de Zé Borges surpreendeu Durval Gato: "Não posso prometer os votos dos meus vereadores, mas posso prometer que pedirei a eles que votem em seu nome para presidente da Câmara." A sutileza presente na resposta sustentava a legitimidade do compromisso e fez com que Durval admirasse ainda mais o vaqueiro "despreparado" que a elite atacava sem conhecê-lo.
O apoio de Durval Gato foi essencial para desbancar o principal adversário, que era apoiado pelos poderosos da época. Zé Borges foi eleito prefeito de Curaçá e ganhou grande reconhecimento na região pela vitória extraordinária e inimaginável diante das famílias tradicionais que dominavam a região até então. A Comissão do Vale do São Francisco chegou a enviar um radiograma ao deputado federal Manoel Novaes, pedindo confirmação do resultado eleitoral, pois considerava aquele resultado impossível.
Segundo Omar Torres, poeta e estudioso da história de Curaçá, mais conhecido por Babá, filho de Durval Gato e visto como uma enciclopédia viva, “o extraordinário da vitória de Zé Borges é o fato dele ter começado como um menosprezado candidato, não muito conhecido, de origem humilde, numa disputa contra “o melhor candidato possível”. Nas palavras de Omar, a alta qualidade do adversário atesta o quanto Zé Borges era extraordinário. Nas palavras de Babá: “Além de filho de Raul Coelho, o mais importante e poderoso líder político do município na sua época, Doutor Jaime já tinha sido prefeito duas vezes, era bom médico, um homem generoso, de reconhecido caráter, influente na região, popular, alegre e, ainda por cima, grande boêmio. Esse conjunto de qualidades do Doutor Jaime justifica o leque de apoio que recebeu da tradicional classe política e ressalta o quanto Zé Borges teve de se esforçar para mostrar qualidades pessoais capazes de convencer ao alienado eleitor da época de que um vaqueiro tinha condição de vencer e ser melhor prefeito que o Doutor médico e tão qualificado adversário”.
No início de sua administração, Zé Borges enfrentou muitas dificuldades, que se agravaram com a ditadura militar no país. Ele tinha uma vocação política com sensibilidade social, portanto, uma tendências a valorizar os mais pobres e enfrentar a ambição egoísta dos mais ricos e poderosos, pois, vindo de origem humilde e católica praticante, tinha aguçada empatia e exercitava a piedade em relação ao sofrimento e à falta de oportunidades dos mais pobres. Apesar dos obstáculos, ele procurou governar em prol dos mais necessitados, dando destaque à educação e principalmente à saúde. Ele obteve sucesso ao investir em parcerias com a rede pública de saúde de Juazeiro, um município maior e próximo a Curaçá.
Com sua vocação para articular apoios, Zé Borges foi um dos poucos prefeitos no estado da Bahia a ser recebido em audiência pelo então presidente Castelo Branco. Durante o encontro, aproveitou sua habilidade política e real compromisso público para reivindicar melhorias significativas em benefício da população de seu município. Uma de suas filhas constatou há alguns anos que, até então, algumas famílias que testemunharam a sensibilidade política de Zé Borges acendiam velas para a fotografia amarelada que restava dos antigos cartazes eleitorais, colados nas paredes de suas casas.
Candidato único
Em 1966, Zé Borges apoiou o médico Pompílio Coelho, primo de seu adversário na eleição anterior, Jaime Coelho, e o levou à vitória, derrotando Euvaldo Aquino. Com uma vida política ativa, Zé Borges abandonou o comércio, que exigia muito tempo, e dedicou-se exclusivamente à pecuária, com a criação de bovinos, caprinos e ovinos no distrito de Poço de Fora, onde até hoje possui muitos parentes. Praticamente toda a população do distrito é de sua família, com filhos, netos e bisnetos de primos em diversos graus de parentesco. O sobrenome Félix é bastante comum no distrito.
Em 1970, Zé Borges foi convidado por correligionários e aliados políticos a se candidatar mais uma vez ao cargo de prefeito de Curaçá, dessa vez com o apoio até mesmo de Euvaldo Aquino. A Convenção daquele ano foi bastante tumultuada, pois havia apenas dois partidos políticos, uma condição imposta pela ditadura militar. Para ser candidato, só havia duas alternativas: Arena ou MDB. Mas, no município, apenas a Arena tinha um diretório regularizado.
Dois candidatos disputaram a legenda, mas o adversário de Zé Borges não teve chance, e ele foi proclamado como o candidato único do município. Houve um pequeno movimento em favor do voto em branco, mas que não teve efeito significativo, esvaziando-se por falta de apoio popular. Mais uma vez, Zé Borges foi eleito prefeito de Curaçá.
Desta vez, teve seu poder político ampliado com o apoio do então governador da Bahia, Antônio Carlos Magalhães, que assumira o cargo em 1971 e destinou verbas importantes para obras de infraestrutura, que eram a prioridade naquele momento.
O importante é a bondade
O segundo mandato de Zé Borges foi breve. Durou menos de dois anos, pois ele faleceu em 22 de novembro de 1971, em pleno exercício do cargo de prefeito. Ele morreu em um hospital de Salvador e seu corpo foi trasladado para Poço de Fora, onde foi sepultado em uma pequena capela na Fazenda Água Branca, ao lado do corpo de sua mãe, Maria Borges Silva, atendendo ao seu desejo expressado à esposa em seu leito de morte. "O importante da nossa vida é que deixemos em alguma parte o fruto de nossa bondade", registra o epitáfio de seu túmulo.
Sua esposa, Nenzinha, cuidou dos filhos e fez questão, com muito esforço, fé e amor, de fornecer a eles o apoio necessário para concluir um curso universitário, que era o sonho mais expressado por Zé Borges em relação ao futuro de sua família. Politicamente, ele foi muito atacado por não ter uma formação universitária e desejava que seus filhos não enfrentassem o mesmo desprezo.
Seu nome é mencionado até hoje pelos moradores mais antigos de Curaçá, especialmente os de Poço de Fora, onde ele é lembrado com carinho por muitos. Ele deixou um legado. Com virtudes interligadas e que dependem da fé, sua notável coragem combinada com a generosidade, tornou Zé Borges um líder admirado. Era incisivo com os poderosos, mas muito gentil e atencioso com os menos favorecidos. Tinha uma autoridade firme e valorizava sua palavra. Se ele prometesse algo, fazia questão de cumprir.
Vocação de família
Dos descendentes de Antônio Borges, nove foram prefeitos. Sete, em Uauá, e dois, em Curaçá. No caso de Uauá ainda houve uma participação especial, além dos descendentes que foram prefeitos. O pai do prefeito Zé Papagaio, Jerônimo Ribeiro, era casado com Maria Borges (irmã de José Felix Filho - Zé Borges) e foi prefeito por quatro mandatos. Apesar dele mesmo não ser descendente dos Borges, sua esposa Maria era o mais importante apoio à sua sólida liderança. A atenção amorosa que ela demonstrava aos mais humildes era muito parecida com a do seu irmão Zé Borges, um líder popular nato. O povo se sentia amado por eles.
Em Curaçá, foram prefeitos dois descendentes: Virgílio Ribeiro, filho de Balbina, e José Felix Filho (Zé Borges), filho de Maria Borges, ambos netos de Francisco. Quem conheceu Zé Borges, pessoalmente, fala de ter conhecido um homem extraordinário. Ele tinha uma autoridade inata e conquistava a confiança das pessoas no primeiro contato.
Segundo Omar Torres, o filho de Durval Santos Torres (Durval Gato), “Zé Borges não era sorridente, mas era muito carismático”. Omar ressaltou: “a grandeza de caráter e sua ética sempre marcaram a vida dele”. O filho de Durval considera importante registrar a história de Zé Borges para inspirar novas gerações. Diz ainda que Durval, seu pai, teve um bom plantel de gado Gir (raça bovina originária do norte da Índia, que se adapta bem ao clima do Nordeste), “todo ele adquirido de Zé Borges”. E faz questão de atestar: “Meu pai foi muito feliz na compra, pois o gado era de altíssima qualidade”.
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Fontes:
1) A maior parte das informações foram extraídas do livro Raízes, de Railda Vieira da Silva.
2) Algumas das informações foram gentilmente cedidas por Riga Ribeiro, do acervo @ribeirouaua, o que também possibilitou traçar a árvore genealógica de Zé Borges.
3) Os relatos testemunhais do poeta Oma Torres (Babá) foram fundamentais para ilustrar a personalidade do vaqueiro e prefeito.
4) Informações do historiador Rubens Antônio, sobre o cangaço na Bahia.
5) Informações do livro Lampião na Bahia e o Cangaço na Bahia, reproduzido por Rubens Antonio, mestre em Geologia, Artes Plásticas e História, autor do blog https://cangaconabahia.blogspot.com/.
Foto antiga, colorizada eletronicamente. Zé Borges está ao centro, de paletó escuro

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